Monday, 28 September 2009
resposta cinética FALTA
"13 horas de filmagem. 3 câmeras na mão. 5 atores dirigidos durante a filmagem por torpedo de celular. Os atores chegam numa casa para serem filmados ininterruptamente sem deixar de seguir roteiros e cenas."
Me animei a escrever mais sobre a FALTA a partir da leitura da crítica “E o teatro, o que é?” que Eduardo Valente publicou em sua Revista Cinética.
Do seu ponto de vista um dos principais problemas da FALTA residiria na explicitação, somente nos créditos finais, do dispositivo que organiza a filmagem - e não nos créditos iniciais, como se isto estivesse em desacordo com o projeto. Se toda a campanha de divulgação do filme, e inclusive a sua sinopse, baseia-se na explicitação destas regras, este argumento me parece irrelevante. As regras são expostas ao longo do filme, reiteradamente. Não há dissimulação. Pelo contrário. São elas que constituem a matéria do longa-metragem. A opção por enumerá-las organizadamente no final da projeção tem para mim um efeito de síntese. É algo que já está dito e entendido. Poderiam ser no início também, como eu coloquei aqui. Sinceramente não é este o ponto.
A potência da FALTA se afirma em esgarçar, além dos limites que o próprio filme impôs, as regras do jogo. Uma atriz se machuca, pessoas se magoam, uma mesa é jogada ao chão. Até que ponto tudo isto é paródia? Seria só mais uma cena de novela, de melodrama, se isto fosse apenas levado a sério. Mas não é. Em jogo estão as construções ficcionais, que dentro do dispositivo do cinema clássico narrativo atendem a um desejo (moderno) de ‘representação da realidade’, mas dentro deste cinema vivo atendem a um desejo de desconstrução. Como andei discutindo com minha amiga Giganta: transparência opaca.
Na verdade o que a FALTA nos põe a fazer não é acreditar, mas é duvidar, o tempo todo. É justamente este acreditar, este pacto do cinema clássico narrativo (herdeiro do teatro burguês), onde sabemos que estão todos fingindo, mas acreditamos, que no filme é posto por terra. Lembro aqui de Goethe, citado por J. Crary em seu seminal “Techniques of the Observer”: não há ilusões de ótica; só há verdades óticas.
Entre aspas transcrevo os pontos mais problemáticos do texto da Cinética que me incitam à reflexão:
“… em termos de linguagem, haja um esforço considerável para dar dinamismo ao que se vê, como se justamente nisso se buscasse fugir de possíveis engessamentos desta matriz teatral”
- Como se o teatro não pudesse ser dinâmico, e como o cinema, o fosse, por definição?
(no cinema) “o ator, não será o dono do poder do discurso, como é no teatro.”
- Podemos dizer que um ator é dono do poder do discurso? Esta frase soa mal. Um discurso é uma estratégia de poder. Mas também na arte os discursos são criações coletivas, práticas sociais, não são algo que pertença a um dono.
“o fato de que a arte da performance de um ator possui força tal que, mesmo assumida totalmente a falsidade da encenação(…)algo acontece ali em que intrinsecamente nós acreditamos”
- Esta argumentação foi cunhada por vários teóricos de cinema para dar conta do que se passa com o espectador do cinema clássico narrativo. Ele sabe que são atores, sabe que é um filme, mas se esquece disto e vive aquela vida por duas horas. No caso do filme de Jatahy, baseado em sua peça codinome “todas as histórias são ficção” não há intenção de esquecimento, mas de lembrança.
Mais do que simplesmente enaltecer a performance (o elenco é fenomenal, diga-se de passagem) o que o cinema vivo da FALTA faz é potencializar a vida, os encontros, as presenças, as durações. O filme de Jatahy é o mais puro cinema contemporâneo, nas suas dimensões deleuzianas de um regime cristalino que sai da armadilha da representação e suas oposições entre real e ficcional. O conceito de mise en scène, que já JLComolli transmuta em mise-en-doute , define o recorte de Jatahy , que se vale de procedimentos de transparência de maneira opaca - a presença das câmeras, as referências ao roteiro, o cuidado com os microfones (como bem sabemos artifícios bastante recorrentes no audiovisual contemporâneo, constituindo um tipo de meta-linguagem presente desde os novos cinemas do pós-guerra).
O sentido da FALTA reside nesta mise-en-scène como mise-en-doute, neste apontar para o dispositivo de maneira contundente: técnica brechtiana antes de ser godardiana, e se Walter Benjamin afirma que o cinema é a forma técnica do teatro épico, temos aqui nesta FALTA um grande exemplo disto. Um grupo, que pertence a uma classe social, que pertence a um tempo, a um lugar, a uma prática discursiva, a um cinema vivo.
“Ou seja: o processo é mais importante que o resultado, que o filme.”
Sim, o processo é mais importante, sempre.
Sabedoria Zen, atentar para o caminho e não para a chegada.
Lições de Live Cinema, a conferir pela Ressaca de Bruno Vianna:
não há filme dado, só há encontro, processo, devir.
“Eternizar este corte significa, sempre, a afirmação de que o cinema continua sendo, queiramos ou não, a arte do diretor”.
Não acredito nesta definição.
Para mim cinema é a arte do encontro entre pessoas e técnica, entre filme e público.
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