Wednesday, 27 January 2010

Máquina de abraçar

Fui rever a peça A Máquina de Abraçar, dirigida e estrelada por amigas queridas.
O anódino, o insignificante e o comportamento da autista Íris me trouxeram de volta a alguns pensamentos despertados pelas imagens estáticas, desinteressantes e monótonas dos CFTVs, como tantos observam. Depois comento mais. A escrita regular neste espaço não tem sido possível nas últimas semanas, de intenso trabalho. Curso, livro, filme, peça, estudo... Projeto de retomar em breve alguma regularidade aqui, compartihando um pouco de tudo isso.
Transcrevo abaixo trecho do texto teatral escrito por José Sanchis Sinisterra.

IRIS – Essa paciência dos vegetais... (Pausa) Eles escolheram, sim, ter essa paciência. E a quietude. Há milhões de anos. Tanto sol, tanta luz, não é mesmo? E a terra ali, que sustentava. Que dava sustento. Para que mais? (Pausa) Os outros, por sua vez: mover-se, buscar, perseguir, atacar, devorar... Caçadores e presas. Dia e noite. Durante milhões de anos. Os outros. Nós. Caçadores e presas. (Pausa) Escolhemos a ansiedade. Eu estava lá, eu sei. Atocaiada. Entre as bocarras, entre as garras. Imóvel. (Vira-se para olhar para MIRIAM, que olha preocupada a sala. Continua falando ao público, mas agora com a fluidez e o “estilo” de MIRIAM). A imobilidade não aparece entre os sintomas que caracterizam a conduta da criança autista, e que a doutora Uta Fritz enumerou em seu livro “Autism. Explaining the Enigma”, de 1989. A saber: forma estranha de andar, escasso controle da voz, rosto aparentemente inexpressivo, movimentos de abano com a mão, ações repetitivas, falta de espontaneidade, perseverança temática e deficiência social, entre outros... (Pausa). É possível que a pequena Iris da Silva mostrasse alguns desses traços típicos. Ou talvez todos. Mas pode-se afirmar, sem a menor dúvida, que a imobilidade era o mais evidente... e o mais persistente. Permanecia horas e horas quase que sem se mover, debaixo do olhar angustiado da mãe, que se esforçava em vão para resgatar a atenção da menina, seqüestrada sabe-se lá em que gruta inaccessível. (Olha sorridente para MIRIAM, que a observa assombrada. Torna a falar para o público) Nem ela, nem ninguém poderia suspeitar que a atenção de Iris se concentrava num suporte muito mais próximo e familiar: a begônia de flores rosadas que respirava, serena e quase feliz, ao lado da janela... (Pausa) É uma mostra de uma coisa que os especialistas observaram na criança autista... sem conseguir explicar. O doutor Kremer, por exemplo, em seu monumental estudo sobre os transtornos do desenvolvimento no autismo (Alarma de MIRIAM), se refere à grande capacidade de concentração que algumas crianças autistas manifestam diante de aspectos do seu entorno imediato... Mas se apressa em apontar que, enquanto para a maioria das pessoas normais a atenção se concentra em coisas chamativas, importantes, significativas,... “o autista” – faço uma citação textual – “é capaz de prolongar indefinidamente sua concentração em circunstâncias totalmente irrelevantes, anódinas, insignificantes, diante das quais qualquer um perderia imediatamente o interesse...” (Pausa)

(MIRIAM titubeia entre intervir ou não, olhando ora para a sala, ora para IRIS. Que continua, trocando novamente de “estilo”)
Era isso, Iris? Você se deixava absorver pelo nada? Ficava presa no âmbar? Era isso? O menos do pouco do quase? Sabe o que significa “insignificante”, Iris? Sabe? Você sabia naquele tempo, atenta ao quase do pouco do menos? Era “insignificante” aquilo que você notava? Aquele leve e lento e ínfimo espasmo da begônia a cada três minutos e dezessete segundos? Aquilo? Aquele não latejar, não aroma, não brilho, não rumor... que a begônia emitia a cada três minutos e dezessete...
(...)
O resto, o que não está nas palavras... o que é que eu sei? Sebastián entendeu, percebeu que meus... que minhas figuras, que meus gestos são... (Faz o gesto da “garra” e, a continuação, uma sucessão de sutis figuras manuais e corporais) eram um... uma... linguagem?, não, uma... um mapa de meus outros... da minha outra paisagem, lá onde não chegam as... Onde todos nós estivemos, sim, vocês também, antes de ver e ouvir, extensão e silêncio, lembram?, quase antes de ser.

(…)

Ele costumava copiar os meus gestos, as minhas figuras... Ou inventava outras... parecidas. E entrava na minha paisagem. Lá, quietos os dois, nós dois, olhando um para o outro sem que nos víssemos, sem se ver, quase que sem respirar. E a paisagem crescia... Primeiro, era o mapa... Depois, o mapa virava paisagem... Lá dentro, a gente se olhando sem se ver... Extensão e silêncio...

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